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Grávida de 7 meses leva facada e cana por …

Era uma tarde comum no Barreiro, um concelho do distrito de Setúbal, quando um crime hediondo abalou não só a comunidade local, mas todo o país. No dia 16 de agosto de 2022, uma mulher de 38 anos, grávida de sete meses, foi brutalmente assassinada pelo próprio companheiro dentro da sua residência. O caso, para além de terrível, levantou uma série de questões sobre violência doméstica, saúde mental, e os mecanismos de prevenção que tantas vezes falham em proteger as vítimas.

O crime aconteceu sem aviso, mas carregado de sinais negligenciados. Segundo vizinhos e relatos posteriores, a relação entre a vítima e o agressor era marcada por tensão, isolamento e um histórico de comportamentos instáveis por parte do homem. Contudo, nada poderia preparar a comunidade para o que estava prestes a ocorrer.

Naquela tarde fatídica, o homem de 31 anos, de nacionalidade cabo-verdiana, esfaqueou a sua companheira várias vezes, infligindo ferimentos profundos na região do pescoço e do tórax. As agressões foram de tal brutalidade que causaram uma hemorragia interna fatal. A vítima, além de perder a vida, estava prestes a dar à luz. O bebé também não sobreviveu.

O crime foi descoberto pouco tempo depois. A Polícia Judiciária foi chamada ao local, e ao chegar deparou-se com uma cena trágica: o corpo da mulher estendido no chão da sala, rodeado de sangue, já sem sinais vitais. O autor do crime, no entanto, já não se encontrava ali. Ele havia fugido, tentando escapar ao país.

Poucas horas após o homicídio, o suspeito dirigiu-se ao Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, na tentativa de apanhar um voo com destino à Holanda. No entanto, graças à rápida coordenação entre as forças de segurança e ao alerta emitido pela polícia judiciária, foi possível intercetá-lo antes de embarcar. No momento da detenção, transportava consigo a arma do crime — uma faca — e não ofereceu resistência. Segundo relatos da PSP, mostrava-se confuso, mas calmo.

O que causou ainda mais comoção foi o facto de o suspeito ter publicado mensagens nas redes sociais anunciando o crime e justificando os seus atos. Numa dessas publicações, dizia que a vítima o tinha traído e que o filho que ela carregava não era seu. Essa alegação, não confirmada por qualquer prova, sugere um quadro de delírio, mais tarde confirmado pela perícia médica.

Submetido a exames psiquiátricos, o homem foi diagnosticado com esquizofrenia, uma perturbação mental grave que, se não tratada, pode conduzir a episódios de psicose, delírios e comportamentos violentos. O relatório da avaliação clínica indicava que, no momento do crime, o agressor não tinha capacidade para compreender a ilicitude dos seus atos. Com base nesse parecer, o tribunal considerou-o inimputável.

O processo judicial foi célere, mas doloroso. O Ministério Público acusou o homem de dois crimes de homicídio qualificado — um contra a companheira e outro contra o feto. No entanto, a sentença final não foi uma condenação penal convencional, mas sim uma medida de segurança. Em julho de 2023, o arguido foi condenado à medida de internamento compulsivo num hospital psiquiátrico por um período mínimo de três anos, podendo estender-se até um máximo de 16 anos, conforme avaliação periódica do seu estado de saúde mental.

Esta decisão gerou reações diversas na sociedade. Para muitos, tratava-se de uma medida justa e humanitária, que reconhecia a realidade da doença mental. Para outros, era insuficiente perante a gravidade do crime, principalmente tendo em conta a perda de duas vidas. A opinião pública dividiu-se, mas uma coisa era consensual: este caso expunha, mais uma vez, as falhas sistémicas no combate à violência doméstica em Portugal.

A vítima, cujo nome não foi amplamente divulgado para proteger a privacidade da família, era descrita por vizinhos como uma mulher tranquila, carinhosa e discreta. Trabalhava num serviço de limpeza e estava ansiosa pela chegada do seu primeiro filho. O relacionamento com o agressor, segundo conhecidos, era recente, mas rapidamente se tornara tóxico. Havia sinais de controlo, ciúmes excessivos e isolamento — características comuns em relações abusivas.

Este caso não é isolado. Segundo dados da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), Portugal regista todos os anos dezenas de homicídios em contexto de violência doméstica, sendo as mulheres as principais vítimas. Em 2022, pelo menos 28 mulheres foram assassinadas pelos seus companheiros ou ex-companheiros. Muitas destas mortes poderiam ter sido evitadas com uma intervenção atempada das autoridades.

O assassinato da grávida do Barreiro levanta, por isso, várias questões urgentes: Como é possível proteger eficazmente mulheres em situações de risco? Porque continuam a falhar os mecanismos de sinalização e intervenção? Que papel desempenham os serviços de saúde mental na prevenção deste tipo de violência?

O diagnóstico de esquizofrenia do agressor é, sem dúvida, um fator relevante. No entanto, também levanta outras inquietações. Havia algum histórico clínico? Alguma instituição estava a acompanhar este homem? A resposta, até hoje, permanece vaga. Sabe-se que o arguido já tinha demonstrado comportamentos paranoicos e tendências agressivas, mas não existia acompanhamento médico formal. O crime, portanto, foi também o culminar de um abandono institucional.

A violência doméstica em Portugal continua a ser, em muitos casos, um problema invisível. As vítimas sentem-se frequentemente desamparadas, envergonhadas ou mesmo culpadas. E, muitas vezes, os alertas são desvalorizados pelas autoridades. A resposta do Estado tende a ser reativa, em vez de preventiva.

A ministra da Justiça à data dos factos, bem como representantes de organizações não-governamentais como a APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), reiteraram a necessidade de reforçar os mecanismos de proteção, nomeadamente os sistemas de vigilância eletrónica para agressores, os serviços de apoio psicológico para vítimas, e a formação especializada para magistrados e forças de segurança.

Do ponto de vista legal, o ordenamento jurídico português prevê medidas como a aplicação de pulseiras eletrónicas, ordens de afastamento e casas-abrigo. No entanto, a eficácia destas medidas depende da sua aplicação atempada e do reconhecimento precoce do risco. No caso da mulher assassinada no Barreiro, não há registo de queixas anteriores. Isto reforça a importância de redes de apoio comunitárias, como vizinhos, colegas de trabalho e amigos, estarem atentos a sinais de alerta.

A morte desta mulher, grávida de sete meses, é uma tragédia em múltiplas camadas: pessoal, social, institucional e simbólica. Representa o falhanço de todos os que, direta ou indiretamente, poderiam ter evitado este desfecho. Mas também serve como ponto de partida para uma reflexão urgente sobre a necessidade de reformar os sistemas de apoio às vítimas e de saúde mental em Portugal.

O funeral da vítima foi realizado discretamente, num ambiente carregado de dor e consternação. Não apenas por parte da família, mas de toda a comunidade. O silêncio que tomou conta da cidade nos dias seguintes era mais eloquente do que qualquer grito. Um silêncio que dizia: “já chega”. Um silêncio que pedia justiça, empatia, e mudança.

Porque cada mulher assassinada representa uma derrota coletiva. Cada bebé que não chega a nascer por causa da violência é uma ferida aberta na consciência de um país. E cada agressor não tratado, não vigiado, não responsabilizado, é uma ameaça em potência.

Que a memória desta mulher não seja esquecida. Que a sua morte — e a do filho que nunca chegou a nascer — nos sirva como um grito de alerta. Que sirva para que outras mulheres, hoje vivas e em risco, possam ser salvas a tempo. Antes que seja tarde demais.

 

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